Por Cínthia Demaria – Jornalista e Psicanalista
Alerta de Spoiler! Se você não leu todos os livros da série, não deve ler este texto.
Muitas pessoas pediram para que eu fizesse uma análise de Steph no Instagram @afternodiva. Se você foi uma delas, sinta-se representad@, este texto é para você! A pergunta do título é a que todos os leitores de After fazem após descobrir a traição de Steph à sua colega de quarto. Quem é Steph?
Antes de mais nada é preciso contextualizar a personagem dentro de uma obra literária, porque é este o ponto aqui. Steph cumpre um papel muito importante na trama de Anna Todd: a de ser uma vilã. Como todo bom romance, alguém precisa assumir esse papel. Como foi uma obra construída aos poucos, percebemos uma tentativa (certeira) da autora pela reviravolta dos personagens durante os cinco livros. Ninguém permanece igual ao longo de toda a narrativa. Nem mesmo Noah ou Carol, que eram tratados como os mantenedores dos ‘padrões sociais’. Todo mundo muda, inclusive eu e você.
No início conhecemos vários vilões: Zed, Molly, Jace… E até Hardin. A pergunta é: vilão para quem? No primeiro livro, como conhecemos a narrativa de Tessa, a priori, Zed e Steph não eram vilões. Para Hardin, Carol, Noah e qualquer obstáculo entre ele e a amada eram vilões. Essa perspectiva varia e é disso que esse texto irá falar.
Apesar de assumir oficialmente o papel de vilã após a cena traumática da traição que ela expõe Tessa, Steph nem sempre cumpriu esse papel. Foi ela quem recebeu a colega de quarto e a acolheu em muitos momentos. Tessa encontrou conforto nela no primeiro ano de faculdade. Quando era pra fugir de Hardin, era com ela que se encontrava e confiava o seu desabafo. O que ela podia dizer a Steph, não podia dizer a mais ninguém naquele momento. Nem a Landon – de quem sentia vergonha por sempre voltar para Hardin e por trair Noah. Steph é também, personagem fundamental no empoderamento de Tessa, pois a encoraja ‘sair’ dos padrões que a reprimiam e revela a ela, numa cena emblemática no espelho, o quanto poderia e deveria valorizar a sua imagem e independência (pra além de roupas e maquiagem). Se houvesse uma companhia igual à Tessa no dormitório talvez ela demorasse um tempo maior para enfrentar às situações novas. Steph é para Tessa, num primeiro momento, um ponto de apaziguamento, como quem reconforta pelas novas situações: “calma, você não é estranha se quiser ser diferente do que sempre foi”.
Se apegar aos seus pares idênticos nem sempre lhe fará experimentar novas situações. E Steph coloca Tessa para sair dessa zona de conforto. Por outro lado, Anna irá virar o jogo nos próximos livros, quando mostra um Hardin tão fragilizado quanto Tessa – e que aos trancos e barrancos se passa até como mocinho – para revelar novas personalidades. E Steph trai Tessa. Talvez traísse desde o início, como ela fez questão de reforçar durante a cena traumática na fraternidade. Anna não se detém ao passado desta personagem com tantos detalhes, então é difícil apontarmos hipóteses sobre o ‘porque’ ela fez o que fez. Mesmo assim é possível afirmar que Steph não trai Tessa. Ela trai Hardin. Há um passado ruim entre os dois que a obriga fazer isso para machucá-lo. Se não fosse Tessa, seria com quem estivesse com ele. Não é Tessa que ela odeia, mas o amor que Hardin sente por ela.
Quando escreve a fatídica carta para Tessa, Hardin conta sobre todo o seu passado sombrio com outras garotas. Algumas seguiram em frente, outras quiseram acertar as contas, como Steph. Da pior maneira possível, é claro. Embora não haja tantos detalhes desta personagem fica muito claro que o amor (ou a falta dele), para ela, também é algo difícil de lidar. Talvez ela não tenha tido a sorte de encontrar alguém como Hardin encontrou, alguém que fizesse ela lidar com o amor de frente, pois isso só se trata quando é feito de dentro. Steph reagiu como Hardin tentava fugir do amor, pela via da agressividade. Mantinha um namoro saudável com Tristan, mas por dissimular a dor, nunca lidou com ela. Por mais doentio que tenha sido, Hardin só conseguiu lidar com as suas questões após aceitá-las.
Steph, ao meu ver, é alguém que não soube lidar com a dor. Passou parte da vida encenando alternativas enquanto o sofrimento estava lá, intocável. Falar da dor é uma forma de tratar. Hardin está aí para nos provar isso.
O que me surpreende ao falar de Steph, entretanto, é como as pessoas acreditam que é possível uma mudança do “bem para o mal” no caso dela, e se indignam com uma “mudança do mal para o bem”, no caso de Hardin. Muita gente não aceita que ele pode mudar. Esta pergunta eu volto então para os leitores: em que realidade a gente quer acreditar? Como cada um lê a história a partir do seu próprio repertório, a resposta à Steph e a todos os personagens é particular ao universo de cada um. Amamos e odiamos aquilo que vemos no outro sobre nós mesmos.
Steph se machucou por não lidar com a sua própria dor e acabou machucando o outro. Por mais terrível que possa ter sido para Tessa a traição, a dor de ser o que é jamais deixará de ser de Steph.
Sobre a autora
Jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há três. Pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital, atua na clínica com jovens e adolescentes. No seu aniversário de 31 anos ganhou o livro After de uns amigos psicanalistas. Em um mês já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.
Por Cínthia Demaria – Jornalista e Psicanalista
Alerta de Spoiler! Se você não leu todos os livros da série, não deve ler este texto.
Perguntei no Instagram do @afternodiva sobre temas que vocês gostariam que fossem discutidos por aqui e recebi várias sugestões. A relação Ken/Hardin apareceu diversas vezes, por isso decidi começar por ela. Trataremos neste texto, sobre a relação pai/filho, desconsiderando Vance por ora, porque foi uma paternidade descoberta tardiamente. Até então, o referencial de pai para Hardin, era Ken.
O ponto de ligação entre os dois personagens se dá por um significante importante: o álcool. Sim, é um ponto de ligação, porque no início da história Hardin está ‘preso’ ao pai por esse passado marcado pelo alcoolismo. O ódio é também um sentimento de ligação (lembra da expressão amódio, já discutida por aqui?). É pela via do álcool que os dois passarão a ter uma visão distorcida da vida e onde irão se esconder de todos os segredos do passado da (não) relação parental.
Hardin se rebela com a vida para se vingar do pai. Muda-se para outro país a pedido da mãe, numa tentativa de aproximar os dois, mas há também um desejo dele. A sensação que fica é que ele também deseja estar próximo de Ken para poder expressar toda a raiva que sentia. Assim que chega aos EUA, Hardin entra num espiral de atuações endereçadas a Ken, tal como morar na fraternidade (ao invés de morar com o pai), matar aulas, descumprir com as atividades da universidade da qual o pai era o reitor etc. Engana-se quem acha que eles não se comunicavam antes de Tessa. Diziam muito, mas através de atos.
A relação do pai com o álcool é incompreendida por Hardin em um primeiro momento, mas é também um fator crucial para o desencadeamento de eventos traumáticos: a ausência do pai em casa, o episódio com a mãe que originará os longos pesadelos e a sombra pela sua própria história. Hardin só reconhece o pai pelo álcool e passa a juventude tentando entender o porque. Qualquer ação de Ken será digna de julgamento do filho por conta do álcool. E é este fator que impedirá Hardin de ver o homem para além do vício.
Em uma saída inconsciente, assim que começa a descobrir o amor que vai além de si mesmo (através de Tessa), ele também passa a se esconder das frustrações pela via da bebida, tal qual descobriremos mais adiante que é igual à saída de Ken. Sempre que há desconforto no relacionamento amoroso, Hardin procura agir como o pai do passado que ele conheceu.
E porque Hardin escolhe o álcool se foi também este o fator de ‘destruição’ familiar? Pode ser por vários motivos: para se vingar do pai, da vida, para se livrar de seus sentimentos, e talvez por ter sido este, o único referencial paterno que ele teve sobre como lidar com a angústia. É claro que é uma saída inconsciente. Dos dois. Ninguém escolhe ser alcoólatra ou se agarrar a algum vício. A toxicomania, sob o ponto de vista psicanalítico, é efeito de um discurso. Cada sujeito possui uma relação particular com o álcool. Freud vai dizer que quando incluem essas experiências em seus dizeres, os sujeitos estão tentando lidar com sua já constituída relação com o mal-estar causado ao longo de toda a vida.
É muito pouco dizer “Ken bebia por conta da infidelidade da esposa” ou “Hardin passou a beber para se tornar igual o pai”. Há fatores que vão além e para todos os casos, o significado é particular. Seria preciso “ouvir” os dois em uma narrativa singular, afastado de suas relações amorosas, para então tentar compreender em sua essência, o papel que o álcool ocupa em seus respectivos desejos. Entretanto, para Hardin, mais uma vez, a ideia que fica é que é uma atuação às atitudes incompreendidas do pai. Ele não se torna um alcóolatra, ele toma o sintoma do pai para si, para fazer sofrer o outro.
A atuação raivosa de Hardin sobre Ken só diminuiu quando é inserida a palavra. Quando eles iniciam um diálogo, os impulsos caem e os segredos se revelam. O psicanalista Jacques Alan Miller vai dizer que onde não há palavra, há ato – qualquer semelhança com a angústia vivida por jovens hoje que decidem tirar a própria vida não é mera coincidência. O diálogo é que permite Hardin ter acesso ao passado e o possibilita expressar sua raiva de maneiras distintas à violência, antes praticada contra tudo e contra todos. Mais pra frente, Tessa irá presentear Hardin com aulas de luta para que ele pudesse canalizar toda a sua agressividade em um esporte. E ajuda. Mas não é só por isso. Enquanto ele libera a adrelina na atividade física, a mente trabalha para que a razão predomine sobre a emoção desvelada.
E somente depois de enfrentar os fantasmas do passado e de superar o sintoma do alcoolismo do pai, pela via da palavra, é que Hardin começa a se abrir para o mundo. Percebam como a relação dele com Ken interfere diretamente na relação dele com Tessa. Quando o sintoma passa a ser falado, o sujeito vê possibilidades de ser amado, inclusive pelo pai odiado no passado. O sintoma, entretanto, será retomado pela nova relação parental que ele se verá obrigado a enfrentar com Vance e Trish, que apesar de ter desencadeado atitudes problemáticas, não durou uma vida inteira para ser superado.
Sobre a autora
Jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há três. Pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital, atua na clínica com jovens e adolescentes. No seu aniversário de 31 anos ganhou o livro After de uns amigos psicanalistas. Em um mês já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.
Por Cínthia Demaria – Jornalista e Psicanalista
Alerta de Spoiler! A coluna desta semana trata de aspectos apresentados nos livros da série After, e não no filme. Recomendamos que a leitura de todo o arco seja feita antes de continuar no parágrafo abaixo.
A coluna After no Divã chegou a Portugal e por lá também há leitores que acompanham as publicações do After Brasil e sugerem temas. Portanto, esse texto é dedicado aos leitores do perfil @after.portugal, que pediram para falar sobre o relacionamento entre Tessa e Carol Young.
O início da “independência” de Tessa, que pela primeira vez sai de casa para ir à faculdade, será marcado pelo corte nas relações que mãe e filha estabeleciam em uma casa cheia de normas, que obedecia a padrões sociais. O dormitório da faculdade já revela de cara à Carol, que a filha sairia do ninho e que a sua vida nunca mais seria a mesma. E é isso que a irrita em um primeiro momento. A questão não é Steph (ou os seus amigos ‘esquisitos’), mas quem seria Tessa perto deles. O que incomoda é a ideia de perder o controle do que a filha veria e viveria ali.
Carol e o controle (Carol and control). Esse seria um bom título para esse texto se não fosse para também falar de Tessa. O jogo das letras que quase forma as duas palavras revela mais uma vez, a jogada de significantes que Anna Todd faz em sua obra – mesmo que não seja proposital. A planilha organizada de Carol é Tessa. Saber os seus horários, controlar os seus sentimentos, os seus passos… Isso se perde. A filha não será perdida. O controle sobre ela, sim.
Por outro lado, quando entra para a faculdade, Tessa perde as garantias do Outro e experimenta, em um primeiro momento, a sensação de desamparo. Há uma desconfiança inicial em seu novo laço social, cujos efeitos podem ser constatados pelas suas novas criações linguísticas e corporais. Como define o psicanalista Jacques Lacan, o desligamento dos pais acirra o desamparo fundamental: a imagem do corpo está alterada e as referências simbólicas do mundo são precárias. Tessa não sabe lidar com o desconhecido quando sai de perto da mãe. Em pouco tempo, o trabalho novo e a cidade nova (Seattle) não será mais problema. Experimentar outra profissão, tão pouco. O desamparo inicial está ligado diretamente à separação parental.
As divergências de experimentações de mãe e filha, entretanto, não serão sem efeitos. Haverá prejuízos, como toda perda. E conflitos. Carol não compreende Tessa. Tessa questiona a criação da mãe. Como uma mãe controladora, Carol tentará identificar no outro a separação de sua filha, porque não consegue suportar que Tessa faça as suas próprias escolhas, e que estas sejam completamente diferentes das que ela traçou. A culpa é de Hardin, não da filha que cresceu e tomou decisões. Em vários momentos alguns leitores podem até se identificar com esta versão ‘protetora’, de que Hardin é o único grande vilão na vida de Tessa. O que pesa a ela, entretanto, é a culpa de assumir suas próprias escolhas, mesmo a mãe a tendo alertado sobre os perigos da vida sem ela.
A virada na vida de Tessa revela como se ela houvesse renascido. Eu ousaria acrescentar a mãe na célebre frase do livro “A vida sem ela (Carol) nunca mais será a mesma”. Por mais que tenha retornado à casa da mãe quando não tinha mais para onde ir, ela nunca mais voltou do mesmo jeito. Já não era a mesma Tessa, que ouvia e concordava com os padrões maternos do que é certo e errado.
Todavia, Carol jamais deixará de ser o ‘porto seguro’ da filha. No fim das contas, como em qualquer relacionamento, conheceremos uma nova Carol Young, que enfrenta as suas questões, reconhece a sua ‘nova’ filha e concorda em confiar a proteção dela ao ‘mundo’, podendo então voltar-se a si e até encontrar um novo amor.
O laço entre as duas é muito importante para que elas se reconheçam em si, independentes uma da outra. Tessa vê na mãe o que não gostaria de ser. Carol vê na filha, uma versão de si mesma que resistiu durante toda a vida. E mais uma vez, como um espelho de nós mesmos, o grande Outro postula a construção de identidades também pelas diferenças.
Afinal, se elas fossem iguais, jamais seriam elas mesmas.
Sobre a autora
Jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há quase três. Pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital, atua na clínica com jovens e adolescentes. No seu aniversário de 31 anos ganhou o livro After de uns amigos psicanalistas. Em um mês já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.
Por Cínthia Demaria – Jornalista e Psicanalista
Alerta de Spoiler! A coluna desta semana trata de aspectos apresentados nos livros da série After, e não no filme. Recomendamos que a leitura de todo o arco seja feita antes de continuar no parágrafo abaixo.
No último texto abordei uma possível análise da cena do lago com a clara coincidência entre o mito do narciso e um Hardin Scott até então apaixonado apenas pela sua própria imagem. Se você ainda não leu, clique aqui para ler. Desta vez, vamos voltar à emblemática cena do primeiro livro da série After sob uma perspectiva bem diferente, a partir da narrativa de Tessa Young, que atravessa também a nossa percepção dos fatos, uma vez que é ela quem conta esta história.
Ao perguntarmos “qual é a cena de After que vem primeiro à sua cabeça”, a do lago sempre estará lá como uma resposta, para a maioria das pessoas, por vários motivos. Além de ter sido (realmente) o primeiro encontro de Hessa, esta cena dá o tom para toda a narrativa de Anna Todd. Considero que é a partir daí que o leitor se vê capturado a adentrar na leitura, para ver o que virá depois do despertar sexual de Tessa. A pulsão sexual aparece pela primeira vez desvelada e então nos amarramos à Hardin junto com ela. Anna nos convence aí que o que vem a seguir é uma história de amor, de enigma e de desejo.
Considero este capítulo como o clímax do primeiro livro, mesmo que depois hajam vários desencontros e voltas. É na cena do lago que decidimos que precisamos ouvir Tessa falar mais sobre o seu primeiro parceiro sexual e qual será o desenrolar disto para a sua própria história.
Quando decide ir ao tal ‘local misterioso’, Tessa permite-se adentrar em vários mundos e vê o desabrochar da sua personalidade em poucos instantes. Enquanto decide ir, ela decide automaticamente abdicar de várias outras escolhas que já havia feito na vida. A caminho do encontro conhecemos uma nova Tessa, que começa a se libertar de antigos hábitos: sai com um ‘desconhecido’, faz algo que a mãe e o namorado reprovariam, abre mão de uma agenda que possivelmente estaria ocupada com estudos e deixa para trás aquela garota que chegou à faculdade a poucos dias. Ao entrar no carro com Hardin, não é apenas ele que ela vai encontrar. É ela mesma. Ela vai ao encontro de si, do seu desejo. Essa é a cena do lago para Tessa: é a cena em que ela se conhece.
Tessa vive o que Freud chama do emblemático reaparecimento do estado de consciência do complexo de Édipo e o desligamento dos pais para o encontro de um objeto amoroso real externo. O despertar da puberdade de Tessa é encontrada em Hardin, não em Noah. Portanto, o que faz o relacionamento com o primeiro namorado falhar não é por uma questão do que ele é melhor ou pior do que o outro, mas o que ele desperta nela; e esse papel, para Tessa, foi despertado por Hardin. Podemos assim dizer, que a escolha amorosa não é consciente. Há fatores externos determinantes, mas mais uma vez, amamos no outro aquilo que ele desperta em nós. Por uma questão narcísica humana, como já foi dito aqui, ‘amo no outro aquilo que ele desperta em mim’.
A cena do lago é isto para Tessa: a descoberta de si, de que poderia fazer escolhas diferente das dos pais (da mãe, no caso) e a descoberta do próprio corpo, do gozo sexual e do prazer oculto do não saber do outro. Como foi abordado no primeiro texto desta coluna, o que mantém Tessa neste relacionamento é a pergunta “Quem é Hardin Scott?”, e eu acrescentaria “E o que ele quer de mim?”. Mais uma vez defendo a ideia de que nomear o relacionamento Hessa como abusivo pura e simplesmente é manter uma ideia (talvez até machista) de que quem define é apenas Hardin. E não é. Há muita escolha e descoberta em jogo que faz Tessa gozar desta posição – não sem sofrimento, mas com um ponto pela descoberta que a mantém e a amadurece, encorajando-a até impor o seu ponto de basta.
A cena do lago é, portanto, para mim, a descoberta de Tessa. Conhecemos um Hardin que se confunde com essa ideia neste mesmo momento, pois percebe que amar a si próprio não seria o suficiente para mantê-la por perto, e uma Tessa que passa a se encontrar. E é nessa oscilação de encontros e desencontros entre si e em relação ao outro, que vai fazer da história irresistivelmente viciante.
Sobre a autora
Jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há quase três. Pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital, atua na clínica com jovens e adolescentes. No seu aniversário de 31 anos ganhou o livro After de uns amigos psicanalistas. Em um mês já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.
Cínthia Demaria é jornalista, psicanalista e autora da Coluna After No Divã, aqui no After Brasil. Seus textos são apresentados semanalmente às quartas-feiras, sempre analisando um aspecto diferente dentro da Série After e os seus derivados.
Por Cínthia Demaria – Jornalista e Psicanalista
Alerta de Spoiler! Se você não leu todos os livros da série, não deve ler este texto.
Perguntamos no Twitter do After Brasil qual é a primeira cena que aparece na mente dos leitores quando pensam em After. A cena do lago foi a resposta que mais apareceu. Por isso, esse texto é para você, que só de pensar no capítulo 25 do primeiro livro da série já sente arrepios. 😉
Você deve estar se perguntando o que Hardin Scott tem a ver com o mito do narciso na cena do lago, não é? Vem comigo que te explico ponto a ponto a seguir.
Para quem não conhece, o mito do narciso se resume a um conto grego de um personagem chamado Narciso. A sua história é marcada pelo excesso, por sua beleza desmedida. Sua mãe, preocupada sobre o destino de seu filho, pergunta a um cego vidente quantos anos ele viveria. Ele diz que Narciso poderia viver muito, desde que ele não se conhecesse (se visse). Aos dezesseis anos, Narciso procurou um lago para saciar a sua sede. Arrebatado pela beleza que viu na imagem refletida na água, apaixonou-se por si mesmo. Ele então tentou beijar a água e a sua imagem, quando percebeu que a “coisa” ilusória de si, dissolvia-se na água. Desesperado em “perder-se de si”, tornou-se insatisfeito e desinteressado pelo que o circundava, alimentando o amor apenas pela própria imagem.
Talvez tenha sido por um acaso, mas é simbólico o momento em que Hardin leva Tessa para conhecer o seu lugar favorito (o lago), apresentando-a, de alguma forma, como ele se via. Nesta cena o personagem responde à ela que a pessoa que ele mais amava no mundo era ele mesmo. Sendo de forma intencional ou não, o que vemos aqui é uma clara referência ao mito do Narciso, que se desinteressa pelo mundo temendo perder-se de si mesmo. O sofrimento do relacionamento deles começa neste ponto, quando ele começa a perder o controle do que mais amava até então, e passa a questionar o amor do outro pela sua própria imagem.
Outro ponto importante para destacar nesta cena é como Tessa faz uma barra ao último momento em que ele olharia apenas para si próprio. Isso fica claro quando ele cede à satisfazê-la no prazer sexual sem ‘nada em troca’ naquele momento. É marcante como ele deixa de olhar para si, para olhar para o outro. Não obstante, essa também foi a última vez que Hardin foi ao lago – ou pelo menos é o que dá a entender na narrativa.
É preciso frisar um ponto com ênfase: não estamos tratando aqui, de um julgamento “Hardin é narcisista”, como o senso comum diz em um tom pejorativo. O propósito é fazer um comparativo simbólico entre o lago e a imagem de Hardin que se vê refletida, naquele momento, voltada só para si, fechado ao amor do outro, e como Tessa ‘quebra’ esta barreira. O conhecimento de sua própria imagem é natural do ser humano e é construído pelo outro, pela forma como ele nos descreve.
A relação entre “imagem” e o desenvolvimento do Eu é importante para a psicanálise. Dizer que alguém é narcisista é dizer que o sujeito passa por um momento constitutivo chamado “estádio do espelho”, denominado por Lacan. É a partir do outro que o sujeito passa a enxergar a si mesmo. É como quando dizemos a uma criança: “aquele que você vê no espelho é você”. É preciso um outro para nomear ao sujeito quem ele é. Trocando em miúdos, o narcisismo faz parte de uma transição que o ser humano faz de sua própria imagem, para enxergar-se a partir de como o outro o descreve.
Neste caso, Hardin sai de sua própria imagem para que o outro (Tessa) o denomine. Portanto, neste momento há um crescimento e um ponto de identificação a ele mesmo, que deixa de ser construído apenas por si próprio. E claro, esse é o primeiro ponto em que o relacionamento deles passa a ser construtivo para os dois, mas não sem a destruição de seus próprios ideais.
A cena do lago, entretanto, vai ter um significado muito diferente para Tessa. O que será que despertou a ela nesse momento? Isso nós vamos ver no próximo texto!
Sobre a autora
Jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há quase três. Pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital, atua na clínica com jovens e adolescentes. No seu aniversário de 31 anos ganhou o livro After de uns amigos psicanalistas. Em um mês já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.
Cínthia Demaria é jornalista, psicanalista e autora da Coluna After No Divã, aqui no After Brasil. Seus textos são apresentados quinzenalmente às quartas-feiras, sempre analisando um aspecto diferente dentro da Série After e os seus derivados.