Matéria publicada por: Cínthia Demaria

Por Cínthia Demaria – Jornalista e Psicanalista

Alerta de Spoiler! Se você não leu todos os livros da série, não deve ler este texto.

Perguntei no Instagram do @afternodiva sobre temas que vocês gostariam que fossem discutidos por aqui e recebi várias sugestões. A relação Ken/Hardin apareceu diversas vezes, por isso decidi começar por ela.  Trataremos neste texto, sobre a relação pai/filho, desconsiderando Vance por ora, porque foi uma paternidade descoberta tardiamente. Até então, o referencial de pai para Hardin, era Ken.

O ponto de ligação entre os dois personagens se dá por um significante importante: o álcool. Sim, é um ponto de ligação, porque no início da história Hardin está ‘preso’ ao pai por esse passado marcado pelo alcoolismo. O ódio é também um sentimento de ligação  (lembra da expressão amódio, já discutida por aqui?). É pela via do álcool que os dois passarão a ter uma visão distorcida da vida e onde irão se esconder de todos os segredos do passado da (não) relação parental.

Hardin se rebela com a vida para se vingar do pai. Muda-se para outro país a pedido da mãe, numa tentativa de aproximar os dois, mas há também um desejo dele. A sensação que fica é que ele também deseja estar próximo de Ken para poder expressar toda a raiva que sentia. Assim que chega aos EUA, Hardin entra num espiral de atuações endereçadas a Ken, tal como morar na fraternidade (ao invés de morar com o pai), matar aulas, descumprir com as atividades da universidade da qual o pai era o reitor etc. Engana-se quem acha que eles não se comunicavam antes de Tessa. Diziam muito, mas através de atos. 

A relação do pai com o álcool é incompreendida por Hardin em um primeiro momento, mas é também um fator crucial para o desencadeamento de eventos traumáticos: a ausência do pai em casa, o episódio com a mãe que originará os longos pesadelos e a sombra pela sua própria história. Hardin só reconhece o pai pelo álcool e passa a juventude tentando entender o porque. Qualquer ação de Ken será digna de julgamento do filho por conta do álcool. E é este fator que impedirá Hardin de ver o homem para além do vício.

Em uma saída inconsciente, assim que começa a descobrir o amor que vai além de si mesmo (através de Tessa), ele também passa a se esconder das frustrações pela via da bebida, tal qual descobriremos mais adiante que é igual à saída de Ken. Sempre que há desconforto no relacionamento amoroso, Hardin procura agir como o pai do passado que ele conheceu.

E porque Hardin escolhe o álcool se foi também este o fator de ‘destruição’ familiar? Pode ser por vários motivos: para se vingar do pai, da vida, para se livrar de seus sentimentos, e talvez por ter sido este, o único referencial paterno que ele teve sobre como lidar com a angústia. É claro que é uma saída inconsciente. Dos dois. Ninguém escolhe ser alcoólatra ou se agarrar a algum vício. A toxicomania, sob o ponto de vista psicanalítico, é efeito de um discurso. Cada sujeito possui uma relação particular com o álcool. Freud vai dizer que quando incluem essas experiências em seus dizeres, os sujeitos estão tentando lidar com sua já constituída relação com o mal-estar causado ao longo de toda a vida.

É muito pouco dizer “Ken bebia por conta da infidelidade da esposa” ou “Hardin passou a beber para se tornar igual o pai”. Há fatores que vão além e para todos os casos, o significado é particular. Seria preciso “ouvir” os dois em uma narrativa singular, afastado de suas relações amorosas, para então tentar compreender em sua essência, o papel que o álcool ocupa em seus respectivos desejos. Entretanto, para Hardin, mais uma vez, a ideia que fica é que é uma atuação às atitudes incompreendidas do pai. Ele não se torna um alcóolatra, ele toma o sintoma do pai para si, para fazer sofrer o outro.

A atuação raivosa de Hardin sobre Ken só diminuiu quando é inserida a palavra. Quando eles iniciam um diálogo, os impulsos caem e os segredos se revelam. O psicanalista Jacques Alan Miller vai dizer que onde não há palavra, há ato – qualquer semelhança com a angústia vivida por jovens hoje que decidem tirar a própria vida não é mera coincidência. O diálogo é que permite Hardin ter acesso ao passado e o possibilita expressar sua raiva de maneiras distintas à violência, antes praticada contra tudo e contra todos. Mais pra frente, Tessa irá presentear Hardin com aulas de luta para que ele pudesse canalizar toda a sua agressividade em um esporte. E ajuda. Mas não é só por isso. Enquanto ele libera a adrelina na atividade física, a mente trabalha para que a razão predomine sobre a emoção desvelada.

E somente depois de enfrentar os fantasmas do passado e de superar o sintoma do alcoolismo do pai, pela via da palavra, é que Hardin começa a se abrir para o mundo. Percebam como a relação dele com Ken interfere diretamente na relação dele com Tessa. Quando o sintoma passa a ser falado, o sujeito vê possibilidades de ser amado, inclusive pelo pai odiado no passado. O sintoma, entretanto, será retomado pela nova relação parental que ele se verá obrigado a enfrentar com Vance e Trish, que apesar de ter desencadeado atitudes problemáticas, não durou uma vida inteira para ser superado.

Sobre a autora

Jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há três. Pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital, atua na clínica com jovens e adolescentes. No seu aniversário de 31 anos ganhou o livro After de uns amigos psicanalistas. Em um mês já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.


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AFTER
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Direção: Jenny Gage
Roteiro: Susan McMartin

AFTER: Depois da Verdade
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Direção: Roger Kumble
Roteiro: Anna Todd

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