Por Cínthia Demaria – Jornalista e Psicanalista
Alerta de Spoiler! A coluna desta semana trata de aspectos apresentados nos livros da série After, e não no filme. Recomendamos que a leitura de todo o arco seja feita antes de continuar no parágrafo abaixo.
A coluna After no Divã chegou a Portugal e por lá também há leitores que acompanham as publicações do After Brasil e sugerem temas. Portanto, esse texto é dedicado aos leitores do perfil @after.portugal, que pediram para falar sobre o relacionamento entre Tessa e Carol Young.
O início da “independência” de Tessa, que pela primeira vez sai de casa para ir à faculdade, será marcado pelo corte nas relações que mãe e filha estabeleciam em uma casa cheia de normas, que obedecia a padrões sociais. O dormitório da faculdade já revela de cara à Carol, que a filha sairia do ninho e que a sua vida nunca mais seria a mesma. E é isso que a irrita em um primeiro momento. A questão não é Steph (ou os seus amigos ‘esquisitos’), mas quem seria Tessa perto deles. O que incomoda é a ideia de perder o controle do que a filha veria e viveria ali.
Carol e o controle (Carol and control). Esse seria um bom título para esse texto se não fosse para também falar de Tessa. O jogo das letras que quase forma as duas palavras revela mais uma vez, a jogada de significantes que Anna Todd faz em sua obra – mesmo que não seja proposital. A planilha organizada de Carol é Tessa. Saber os seus horários, controlar os seus sentimentos, os seus passos… Isso se perde. A filha não será perdida. O controle sobre ela, sim.
Por outro lado, quando entra para a faculdade, Tessa perde as garantias do Outro e experimenta, em um primeiro momento, a sensação de desamparo. Há uma desconfiança inicial em seu novo laço social, cujos efeitos podem ser constatados pelas suas novas criações linguísticas e corporais. Como define o psicanalista Jacques Lacan, o desligamento dos pais acirra o desamparo fundamental: a imagem do corpo está alterada e as referências simbólicas do mundo são precárias. Tessa não sabe lidar com o desconhecido quando sai de perto da mãe. Em pouco tempo, o trabalho novo e a cidade nova (Seattle) não será mais problema. Experimentar outra profissão, tão pouco. O desamparo inicial está ligado diretamente à separação parental.
As divergências de experimentações de mãe e filha, entretanto, não serão sem efeitos. Haverá prejuízos, como toda perda. E conflitos. Carol não compreende Tessa. Tessa questiona a criação da mãe. Como uma mãe controladora, Carol tentará identificar no outro a separação de sua filha, porque não consegue suportar que Tessa faça as suas próprias escolhas, e que estas sejam completamente diferentes das que ela traçou. A culpa é de Hardin, não da filha que cresceu e tomou decisões. Em vários momentos alguns leitores podem até se identificar com esta versão ‘protetora’, de que Hardin é o único grande vilão na vida de Tessa. O que pesa a ela, entretanto, é a culpa de assumir suas próprias escolhas, mesmo a mãe a tendo alertado sobre os perigos da vida sem ela.
A virada na vida de Tessa revela como se ela houvesse renascido. Eu ousaria acrescentar a mãe na célebre frase do livro “A vida sem ela (Carol) nunca mais será a mesma”. Por mais que tenha retornado à casa da mãe quando não tinha mais para onde ir, ela nunca mais voltou do mesmo jeito. Já não era a mesma Tessa, que ouvia e concordava com os padrões maternos do que é certo e errado.
Todavia, Carol jamais deixará de ser o ‘porto seguro’ da filha. No fim das contas, como em qualquer relacionamento, conheceremos uma nova Carol Young, que enfrenta as suas questões, reconhece a sua ‘nova’ filha e concorda em confiar a proteção dela ao ‘mundo’, podendo então voltar-se a si e até encontrar um novo amor.
O laço entre as duas é muito importante para que elas se reconheçam em si, independentes uma da outra. Tessa vê na mãe o que não gostaria de ser. Carol vê na filha, uma versão de si mesma que resistiu durante toda a vida. E mais uma vez, como um espelho de nós mesmos, o grande Outro postula a construção de identidades também pelas diferenças.
Afinal, se elas fossem iguais, jamais seriam elas mesmas.
Sobre a autora
Jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há quase três. Pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital, atua na clínica com jovens e adolescentes. No seu aniversário de 31 anos ganhou o livro After de uns amigos psicanalistas. Em um mês já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.