Por Cínthia Demaria – Jornalista e Psicanalista
Alerta de Spoiler! Se você não leu todos os livros da série, não deve ler este texto.
Perguntamos no Twitter do After Brasil qual é a primeira cena que aparece na mente dos leitores quando pensam em After. A cena do lago foi a resposta que mais apareceu. Por isso, esse texto é para você, que só de pensar no capítulo 25 do primeiro livro da série já sente arrepios. 😉
Você deve estar se perguntando o que Hardin Scott tem a ver com o mito do narciso na cena do lago, não é? Vem comigo que te explico ponto a ponto a seguir.
Para quem não conhece, o mito do narciso se resume a um conto grego de um personagem chamado Narciso. A sua história é marcada pelo excesso, por sua beleza desmedida. Sua mãe, preocupada sobre o destino de seu filho, pergunta a um cego vidente quantos anos ele viveria. Ele diz que Narciso poderia viver muito, desde que ele não se conhecesse (se visse). Aos dezesseis anos, Narciso procurou um lago para saciar a sua sede. Arrebatado pela beleza que viu na imagem refletida na água, apaixonou-se por si mesmo. Ele então tentou beijar a água e a sua imagem, quando percebeu que a “coisa” ilusória de si, dissolvia-se na água. Desesperado em “perder-se de si”, tornou-se insatisfeito e desinteressado pelo que o circundava, alimentando o amor apenas pela própria imagem.
Talvez tenha sido por um acaso, mas é simbólico o momento em que Hardin leva Tessa para conhecer o seu lugar favorito (o lago), apresentando-a, de alguma forma, como ele se via. Nesta cena o personagem responde à ela que a pessoa que ele mais amava no mundo era ele mesmo. Sendo de forma intencional ou não, o que vemos aqui é uma clara referência ao mito do Narciso, que se desinteressa pelo mundo temendo perder-se de si mesmo. O sofrimento do relacionamento deles começa neste ponto, quando ele começa a perder o controle do que mais amava até então, e passa a questionar o amor do outro pela sua própria imagem.
Outro ponto importante para destacar nesta cena é como Tessa faz uma barra ao último momento em que ele olharia apenas para si próprio. Isso fica claro quando ele cede à satisfazê-la no prazer sexual sem ‘nada em troca’ naquele momento. É marcante como ele deixa de olhar para si, para olhar para o outro. Não obstante, essa também foi a última vez que Hardin foi ao lago – ou pelo menos é o que dá a entender na narrativa.
É preciso frisar um ponto com ênfase: não estamos tratando aqui, de um julgamento “Hardin é narcisista”, como o senso comum diz em um tom pejorativo. O propósito é fazer um comparativo simbólico entre o lago e a imagem de Hardin que se vê refletida, naquele momento, voltada só para si, fechado ao amor do outro, e como Tessa ‘quebra’ esta barreira. O conhecimento de sua própria imagem é natural do ser humano e é construído pelo outro, pela forma como ele nos descreve.
A relação entre “imagem” e o desenvolvimento do Eu é importante para a psicanálise. Dizer que alguém é narcisista é dizer que o sujeito passa por um momento constitutivo chamado “estádio do espelho”, denominado por Lacan. É a partir do outro que o sujeito passa a enxergar a si mesmo. É como quando dizemos a uma criança: “aquele que você vê no espelho é você”. É preciso um outro para nomear ao sujeito quem ele é. Trocando em miúdos, o narcisismo faz parte de uma transição que o ser humano faz de sua própria imagem, para enxergar-se a partir de como o outro o descreve.
Neste caso, Hardin sai de sua própria imagem para que o outro (Tessa) o denomine. Portanto, neste momento há um crescimento e um ponto de identificação a ele mesmo, que deixa de ser construído apenas por si próprio. E claro, esse é o primeiro ponto em que o relacionamento deles passa a ser construtivo para os dois, mas não sem a destruição de seus próprios ideais.
A cena do lago, entretanto, vai ter um significado muito diferente para Tessa. O que será que despertou a ela nesse momento? Isso nós vamos ver no próximo texto!
Sobre a autora
Jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há quase três. Pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital, atua na clínica com jovens e adolescentes. No seu aniversário de 31 anos ganhou o livro After de uns amigos psicanalistas. Em um mês já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.
Cínthia Demaria é jornalista, psicanalista e autora da Coluna After No Divã, aqui no After Brasil. Seus textos são apresentados quinzenalmente às quartas-feiras, sempre analisando um aspecto diferente dentro da Série After e os seus derivados.